Se lembra que, quando criança, você deitava no chão do quintal para admirar o azul do céu?
E, ao fechar os olhos, tudo o que enxergava era uma cor laranja, quase vermelha e quente. Aquilo lhe aquecia por inteira, pois significava que, mesmo não o vendo, o sol estava ali. Você se sentia acolhida e segura, capaz de conquistar qualquer coisa. Ao longe, era possível ouvir o papai montar a piscina e enchê-la de água. Mais tarde a mamãe ia fazer picolé para a sobremesa. As portas e janelas, todas abertas, para deixar o ar entrar, circular. Era tudo livre, tudo claro, tudo ensolarado.
E você, sentindo e ouvindo tudo isso, permanecia ali, feliz, de olhos bem fechados, até sentir a mão macia de sua mãe acariciando os seus cabelos e dizer: “Minha menina linda só merece o melhor. Minha menina linda, merece ser feliz.”
…
Do dia para a noite o que é belo pode mudar.
….
O frio na barriga é sinal de uma noite empolgante. Mas você ainda pensa se é o certo a fazer enquanto observa o escarlate do seu esmalte que cintila à luz da lua. Está tão absorta que não percebe qualquer presença ao seu redor, até uma sombra bloquear o reflexo de seus pensamentos. Ele está em pé a sua frente, sorrindo. O seu coração instantaneamente bate mais forte, tão forte que quase não consegue ouvi-lo dizer o quanto você está linda. Tudo pulsa em você e, ao menor toque, você incendeia, como toda garota que se apaixona no primeiro encontro.
…
De olhos bem fechados parece que está tudo claro novamente, é como se estivesse deitada ao ar livre, sentindo o sol. Mesmo assim, a dor não vai embora. Ao tentar abrir os olhos um clarão ofusca sua visão. Ele para. E vem mais um. Para novamente. Até que vem um atrás do outro, tão rápido que te deixa zonza. São as lâmpadas espalhadas pelo extenso corredor do hospital.
Por que está aqui? Por que está todo mundo gritando? Por que sua mãe está chorando lá fora?
Um suor percorre pelo seu corpo, mas você sente frio. Levanta a mão vagarosamente e repara em sua mão. E percebe que não é suor.
Por que foi levantar a voz daquele jeito? Só o deixou mais irritado. Não era o momento de conversar, de pedir explicação, de cobrá-lo. O arrependimento de suas palavras dura tanto quanto a velocidade da mão dele, em punho, na direção da sua cabeça, do seu corpo, do seu peito. Um soco atrás do outro, sem ter tempo de se defender. Não demora até seu corpo estar todo manchado, coberto de um vermelho escuro. Uma escuridão que vem tomando conta da sua visão até se tornar um breu, com vozes ao fundo indecifráveis.
Você some.
E só reaparece por conta da dor forte no peito e das luzes ofuscantes. Vem à tona aquela sensação, a lembrança daquela briga.
Ao fundo, junto com os gritos de sua mãe, você ouve ele dizer: “Foi um acidente. Eu nunca faria mal à ela”.
Uma lágrima escorre de seus olhos. Tenta se lembrar da última vez que se sentiu segura… uma vaga lembrança daquele tempo onde as portas e janelas estavam sempre abertas, onde o vermelho alaranjado que via significava momentos de felicidade.
Para onde foram os dias de sol?
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