Os cães sabem quando há algo errado – final

É claro que não preguei os olhos a noite toda após aquela notícia. Ao amanhecer, levantei num salto, me arrumei e fui para a sala. Ele ainda estava lá, dormindo. E eu nem sabia que espíritos dormiam.

Devagar, fui em direção a cozinha tentando agir naturalmente. Eu não fazia a mínima ideia do que fazer. Se antes a situação já estava complicada, imagine agora.

Milhões de perguntas passavam pela minha cabeça. Será que ele realmente tinha morrido? Ou será que a foto era de uma pessoa parecida com ele? Como ele iria embora? Teria que encontrar a luz ou algo assim?

Qualquer que fosse a verdade, teria que ser sutil. Afinal, se ele tinha realmente morrido não tinha consciência disso.

Estava tão afogada nesses pensamentos que nem o ouvi levantar. Ele simplesmente apareceu atrás de mim dizendo “Bom dia”.

Dei um pulo e derrubei a frigideira no chão. Preocupado, ele tentou me ajudar, mas eu insisti que não. Não era uma boa ideia…

Ele foi para a sala novamente um tanto cabisbaixo. Após limpar a cozinha, fui lhe fazer companhia. Tentei puxar assunto:

– Então, acho que você não me disse seu nome…

– Ah, desculpe. Me chamo Luiz e você?

– Eu sou a Nayara. Prazer… Fazia tempo que morava nessa casa?

– Há mais de 20 anos. Morávamos minha esposa e eu, mas há uns 5 anos mais ou menos ela faleceu…

– Eu sinto muito. E a empresa você trabalhava, como era lá?

– Era um bom lugar. Muito trabalho, mas pagava as contas. Não entendo porque foi abandonada…

– E o que aconteceu no dia que ficou trancado lá? O que aconteceu?

– Por que tantas perguntas? Estou ficando bem desconfortável com esse interrogatório! Eu não fiz nada de errado para ser tratado assim… – disse ele claramente ficando alterado.

Eu não queria aborrece-lo ainda mais. O que pode acontecer quando se irrita um espírito? Eu que não queria pagar para ver. Tentei tranquilizá-lo:

– Tudo bem, desculpe, não quis ser invasiva. O senhor tem razão, não precisamos falar sobre isso.

Ele não me respondeu. Ficamos ali parados por um tempo, em silêncio. Eu procurando desesperadamente puxar outro e ele ali, olhando para suas próprias mãos.

Depois de uma longa pausa ele novamente falou:

– Me desculpe. Me exaltei com você e sei que só está querendo ajudar. A verdade é que não me lembro o que aconteceu. Só que em um momento estava trabalhando e no outro trancado naquele galpão. Não saber exatamente o que aconteceu me deixa muito frustrado e angustiado.

Pensei por alguns minutos antes de responder. Percebi que não havia outra solução se não contar a verdade. Tinha que falar e ele teria que lidar logo com isso para, quem sabe, encontrar um pouco de paz:

– Luiz, eu sei o que aconteceu… Andei pesquisando sobre a empresa que você me falou… – disse receosa, esperando a reação dele.

Ele me olhava, esperando que eu continuasse. Havia muitas dúvida em seu olhar. Por isso, continuei:

– Há quatro anos mais ou menos essa empresa foi acometida por um incêndio na madrugada e matou 6 funcionários… Depois disso, a empresa fechou as portas, pois não tinha como se reerguer financeiramente – eu disse rapidamente, a fim de acabar logo com isso.

Ele me lançou um olhar perplexo, parecia que eu estava dizendo algo absurdo. Num rompante ele se levantou e começou a gritar:

– É assim que você vai jogar? Fazer eu acreditar que estou morto, só para não ter que lidar com a negociação da casa? Acha que vou acreditar nessa historinha, Nayara!

Gritando cada vez mais alto e gesticulando, ele se aproximou de mim disposto a me chacoalhar pelos ombros. Mas isso não aconteceu. As suas mãos simplesmente atravessaram o meu corpo.

Ele arregalou os olhos e tentou me tocar várias vezes, sem sucesso. Sem saber o que fazer e ainda chocado, se sentou novamente e desatou a chorar:

– Agora eu lembro de tudo… – dizia entre soluços – eu sempre dizia que aquele painel elétrico precisava de conserto, ninguém nunca me ouvia. Foram negligentes conosco… meus amigos, eu, todos tiveram o mesmo fim naquela noite. Justo nós, que nos dedicamos tanto àquele lugar, trabalhando sem receber hora extra, só pelo prazer fazer um trabalho bem feito.

Nem notei que chorava também. Eu não podia imaginar o que ele estava passando, perder tudo e nem ao menos se dar conta de que havia morrido. Mas sentia aquele dor como se fosse em mim.

Comovida, me sentei ao lado dele tentando acalmá-lo. Ele se virou para mim e disse:

– Muito obrigado por ter me ajudado. Graças a sua coragem, agora estou mais aliviado. Estou finalmente livre. Fazia parte de um plano maior você vir morar aqui, com certeza.

– Eu cuidarei muito bem de sua casa, Luiz…fique tranquilo – disse eu com a cabeça baixa e chorando, sem notar que meu pai entrara na sala.

– Falando sozinha, Nayara?

Olhei para o lado e não havia ninguém. Luiz finalmente havia encontrado a paz que tanto procurava.

Enquanto eu estava distraída, meu pai ainda estava de pé esperando respostas:

– Você me manda uma mensagem daquelas, me deixa preocupado e agora não vai falar nada? O que aconteceu? – disse ele já ficando zangado.

– Pai, sente-se aqui. Vou te contar o que aconteceu. Mas tem que prometer que vai acreditar em mim.

– Sempre. Desembucha. – disse ele me dando uma piscadinha.

Contei a história com todos os detalhes possíveis. Ao final, meu pai fez cara de quem queria rir, mas dava para ver que estava impressionado:

– Eu disse para você que morar em uma casa era má ideia. Além de ser perigoso por conta de assaltos e invasões, corre o risco de ser mal assombrada – disse ele rindo.

– Ai pai… ainda não é hora para piadas! – disse eu rindo também.

– Tudo bem, só tenho uma pergunta: afinal, por que você estava acordando todas as noites no mesmo horário? O que isso tem a ver?

– Luiz disse que todos os dias chegava naquele mesmo horário e que conseguiu sair do galpão há uns 5 dias. Acho que de certa forma os cães sentiram que ele estava voltando para casa.

– Faz sentido, os cães sempre sabem de tudo… – disse ele pensativo, mas logo emendou – Vamos, vou te levar para almoçar. Depois dessa noite você merece sair um pouco dessa casa e relaxar.

Levantei, peguei minha bolsa e antes de fechar a porta olhei para minha casa mais uma vez. Qualquer pessoa em meu lugar optaria por se mudar, mas eu não faria isso. Aquela casa tinha uma história que começou antes de mim e que agora eu fazia parte dela.

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